Avançar para o conteúdo principal

São João


De acordo com alguns dos autores mais avisados, o S. João a que se referem as Lojas dos graus simbólicos do Rito Escocês Antigo e Aceite, não é nenhum dos dois S. Joões Solsticiais celebrados pelo Cristianismo, na tradição romana dos Janua - o Baptista (24 de Junho) e o Evangelista (27 de Dezembro) -, mas o cipriota S. João Esmoler, também conhecido como S. João de Jerusalém, cujas acções de apoio aos cruzados e à reedificação de templos entretanto destruídos pelos povos ditos bárbaros lhe teriam valido a eleição como patrono da Maçonaria. A tradição recente, contudo, (e esta vem, pelo menos, do séc. XVIII), atribui ao Solstício de Verão, incarnado pela festividade de S. João Baptista, uma importância diferenciada, símbolo do início de numa nova vida, através do baptismo, e da entrada numa época cíclica de maior Luz. O Baptista, lembra-nos, assim, o fundamento iniciático da Ordem a que pertencemos. Parafraseando René Guénon, a iniciação consiste essencialmente na transmissão de uma influência espiritual, transmissão que só se pode efectuar por intermédio de uma organização tradicional regular, sendo completamente descabido falar de iniciação fora do âmbito de uma tal organização . A regularidade a que Guénon alude, refere-se a organizações que, ao longo dos tempos, de forma não interrompida, numa cadeia de transmissão contínua, asseguram uma influência espiritual, suportada em ritos apropriados. A identidade específica e o sentido de pertença de cada um dos seus membros a uma organização iniciática tradicional é suficiente para uma iniciação virtual, uma vez que o trabalho interior que se lhe segue se refere à iniciação efectiva, que é, em suma, em todos os seus graus, o desenvolvimento no acto das possibilidades que a iniciação virtual propicia. Esta iniciação virtual funciona, assim, como uma entrada, um começo, o ponto de partida para um caminho, cujo objectivo é chegar ao fim. Assim, se a iniciação virtual é a entrada no caminho, o percurso que ele aponta constituirá a iniciação efectiva. O caminho que a iniciação abre é, sempre, um caminho operativo, que consiste no sistemático trabalho sobre a pedra bruta que cada um de nós é. Desviarmo-nos daqui, é fugir do percurso que nos foi desvelado no dia da nossa iniciação.

É claro que, na senda do nosso aperfeiçoamento, está implícita a procura do aperfeiçoamento do Mundo que habitamos, e de tudo o que o povoa. O trabalho de Loja, no entanto, consiste numa ajuda exterior ao trabalho interior de realização e nunca numa projecção para o exterior de algo que não esteja devidamente depurado das suas impurezas e irregularidades, como a pedra bruta que cada um de nós representa. Existe por vezes uma urgência extrema em alguns de nós, na transposição dos trabalhos de Loja para o mundo profano, no exercício de acções conjunturais para fora dos muros da nossa Augusta Ordem. Todas as acções conjunturais de verdadeiros Maçons no mundo profano são conjunturalmente positivas, mas não são acções maçónicas. O verdadeiro trabalho maçónico é o trabalho de Loja, que é o aperfeiçoamento de cada elemento ou pedra que a constitui. Sempre que esse trabalho não é devidamente realizado, o processo iniciático interrompe-se, ou é abalado, e surge uma necessidade imediata de projecção para o exterior do que está incompleto ou imperfeito. Essa projecção é, frequentemente, nefasta, quer para a Maçonaria, quer para os Maçons, quer para a sociedade profana. Qualquer edificação composta de materiais imperfeitos está condenada a ruir, e a provocar vítimas inocentes. No concílio de Arras, em 1023, as autoridades eclesiásticas determinaram que as igrejas deveriam exprimir a representação, nas suas paredes, das cenas e dos ensinamentos das Sagradas Escrituras. É assim que as igrejas e as futuras catedrais se transformam num verdadeiro catecismo visual da mensagem cristã: os personagens do Antigo Testamento são colocados no Norte, enquanto que os do Novo Testamento recebem a luz brilhante do sol , pela sua localização no sul do edifício. Esta codificação, que se estende também aos arquétipos formais dos diversos personagens intervenientes, resulta numa verdadeira sinergia de comunicação . A iconografia mostrava, de modo recorrente, a imagem central de Cristo crucificado, tendo à sua direita Maria a Mãe -, e à sua esquerda, o discípulo que Ele mais amava , João Evangelista, eventualmente simbolizando o Novo Testamento, a Luz, o amigo fiel. Na época medieval era este um dos santos mais venerados. A sua festa realizava-se a 27 de Dezembro, por alturas do solstício de Inverno. No entanto, os velhos manuscritos alemães e ingleses das corporações de pedreiros livres apenas fazem referência a Cristo, a Maria e aos quatro mártires coroados os quator coronati que se constituíam patronos e protectores dos construtores.

Um velho ritual pagão que festejava o Sol no mês de Junho, foi apropriado pelo culto romano da deusa Vesta, patrona do Fogo e, posteriormente, pelo cristianismo, que o atribuiu a João Baptista, no solstício de Verão, a 24 de Junho. Etimologicamente, Junho, deriva do latim Junius-Junior, que significa o mais novo, ou o que renova. Para o Cristianismo, João Baptista é o testemunho da Luz, do verbo incarnado, o que introduz o rito do baptismo, ou seja, da renovação. Vinte e três Papas adoptaram o seu nome; duas ordens cavaleirescas renderam-lhe homenagem. Por diversas vezes, ao longo destes anos de aprendizagem das coisas da Maç\, tenho partilhado convosco algumas reflexões sobre o sentido e a intensidade simbólica da tradição Joanita e doutras que, em diferentes sistemas culturais e religiosos, a precederam ou acompanharam. De igual modo estabelecemos a sua relação com os ciclos naturais. No caso vertente, com os que se referem a essa relação íntima e inultrapassável entre o movimento de translação da Terra e a fonte de luz, de vida, de energia que é o Sol. Conjuntamente, percorremos os trilhos da inegável atribuição mítica dos momentos solsticiais. Do Oriente mais ou menos próximo à Sulamérica pré-colombiana, das estepes gélidas do Norte à saturada humidade equatorial, da Patagónia ao Alasca, penso que, embora com declinações e efeitos diferenciados, há uma consciência simultaneamente pragmática e mística do aparente ciclo solar, essência do mito do eterno retorno. Se pensar é perguntar para obter respostas, não estarei longe da verdade ao admitir que estas desaguam no registo das repetições a que nos habituámos a ter como regras. Esta eterna, periódica e sistemática recorrência solsticial, que ao fim e ao cabo sintetiza o sentido natural da vida, está explicada, na sua dimensão simbólica, no ritual que acabamos de interpretar. A nossa memória está prenhe. Que mais dizer? Os vários João que temos vindo a referir não são, na tradição Maçónica, meros símbolos solsticiais. São mais que as duas portas da eterna repetição que os romanos atribuíam a Janus bicéfalo, que os pitri e deva yana hindus, ou o yin e yang do Zen.

O positivismo iluminista do século XVIII, juntamente com a coeva descristianização da Maçonaria Anglo-Saxónica, relegaram para plano secundário o papel fundeador que o João Baptista, primeiro e, mais tarde, o João Evangelista, representam na ancestral cultura Maçónica, na sua síntese filosófica e esotérica, e que se reporta ao tempo de Salomão. Ao procurar repor, pela erudição, um sentido naturalista no acto simbólico que é a festa de São João Baptista, as Lojas que seguiram essa tendência afastaram-se da sua essência cultural. Pretendo com isto dizer que, na tradição ancestral, as Lojas Maçónicas não são Lojas Solsticiais, mas sim e antes de tudo, Lojas de S. João. E é o profundo significado filosófico e esotérico desse facto que importa aqui tentar reter, como cultura, mais do que todos os aspectos científicos e naturalistas relacionados com o ciclo Solar e as inerentes relações agrárias ou agrícolas. Estas, sim, são meramente simbólicas, no que diz respeito à nossa Nobre e Augusta Ordem. João Baptista é um profeta que anuncia e prepara, no sistema iniciático, a vinda da Luz. Ele ensina a humildade, a renúncia ao ego, sem as quais a iniciação e o progresso espiritual são impossíveis: É preciso que ele cresça e que eu diminua . (Haverá expressão mais profunda deste sentido do que esta? Pobre do Mestre que não aspire a ser ultrapassado pelo seu discípulo!). Baptista simboliza, assim, o grande iniciador, o Mestre sábio que prepara, humildemente, o caminho ao Aprendiz. O Evangelista, em contrapartida, representa o Irmão que recebeu a Luz e que a dimana na sua sabedoria, identificando-a com o Verbo e com o Amor. É assim que, na minha modesta e humilde opinião, os diversos João que sistemática e racionalmente procuramos reduzir ao emblemático ciclo solsticial, simbolizam duas fases fundamentais que cada Maçon deve atravessar e reviver no seu percurso iniciático: a da expectativa do vislumbre da Luz, num esforço e em obras que constituem já amor; e a da chegada da Luz que, em simultâneo com o conhecimento, nele fará eclodir o Amor na sua verdadeira perfeição. Antigo e Novo Testamento, Moisés e Salomão, Baptista e Evangelista, mais do que marcos emblemáticos, icónicos ou simbólicos, são a face exprimível de uma cultura ancestral que nos enforma. Mais do que negada ou substituída, ela deve ser entendida na sua real substância e esta, sobrejaz a todo e qualquer sistema religioso ou eclesiástico, do mesmo modo que a língua, os usos ou os costumes.

Serve isto para propor aquilo que nos pertence e nos é intrínseco. Mais do que ir ao mundo profano buscar figuras influentes, profluentes e eventualmente poderosas, para decorar a vaidade das nossas Lojas, importa receber no nosso seio aqueles que, humildemente, queiram partilhar comnosco essa busca do Saber que se sustenta na Beleza do Amor e na Força do trabalho e da sustentabilidade, para que os nossos valores, mais do que as pessoas que os encarnam ou transmitem, possam de facto exercer a influência necessária à sua consolidação naquilo a que hoje resumidamente chamamos o sentido de cidadania. Que a força iniciática do baptismo renovador que celebramos no Solstício de Verão, produza a Luz sábia e irradiante que, por intermédio do Amor, voltaremos a colher no próximo solstício de Inverno. O Baptista, deverá lembrar-nos o fundamento iniciático da Ordem a que pertencemos.



Luis C.


http://www.maconaria.net/

Mensagens populares deste blogue

O numero 5

“Não sei ler, nem escrever: só sei soletrar. Dá-me a Primeira letra e eu dar-te-ei a Seguinte”. “Não posso pronunciá-la, mas soletrá-la-ei contigo; dás-me a Primeira letra e eu dar-te-ei a Segunda”…Os Rituais para a emissão da Palavra Sagrada nos Graus de Aprendiz e Companheiro são, também, uma orientação para a atitude que o postulante deve ter neste percurso: recebe alguma instrução, são-lhe apresentados alguns mistérios, mas deverá ele próprio encontrar e elaborar dentro dele as respostas para os mistérios e segredos com que se depara. Na Ordem Maçónica, essas respostas e segredos desvendados nunca são definitivos, mas são sempre justos, e adequados ao Grau em que se encontra o postulante. É a natureza polissémica da Palavra, são os diferentes mantos que se vão afastando na descoberta dos símbolos e mistérios na construção do Templo. Heraclito afirmou que a “natureza, a realidade, gosta de se esconder " e que esta realidade escondida está além do alcance dos homens que a

Maçonaria Críptica

Maçonaria Críptica: percurso atribulado de um itinerário histórico O que são os graus maçónicos crípticos? Constituem eles um Rito maçónico específico? Qual a génese da sua integração no Rito de York? Será a sua sequência coerente nos altos graus? Que caminho percorreram eles até hoje? Estas são, porventura, algumas das questões pertinentes que qualquer maçom críptico se coloca ou, deveria colocar, no âmbito do seu caminho iniciático, sob pena de não compreender,  nem realizar,  uma prática consciente destes graus do Rito de York. O objectivo deste ensaio consiste, deste modo, em tentar responder a estas questões, identificando e sistematizando a génese e a evolução histórica do Rito Críptico na Maçonaria anglo-saxónica, sistema litúrgico e iniciático, cujos graus, na origem, não possuíam um encadeamento lógico recíproco. Esperamos, deste modo, poder contribuir para a história atribulada da origem e desenvolvimento cronológico dos graus deste Rito, constituint

Mestre Escolhido

MESTRE ESCOLHIDO Este grau começa com Zabud, amigo do rei Salomão, a pedir clemência. Para a maioria dos Companheiros, Zabud é apenas mais um personagem caricato do passado. No entanto, uma leitura dos textos da Sagrada Escritura revela que ele foi verdadeiramente um amigo e companheiro do rei Salomão.  Zabud, era filho de Nathan, o Profeta, que era o principal conselheiro do rei David. Foi através da estratégia de David, Nathan e Bath-Sheba que Salomão chegou ao trono de Israel, quando o herdeiro natural do trono deveria ter sido Adonias. Zabud devia ter a mesma idade de Salomão e, provavelmente frequentado a Corte, onde adquiriu a amizade e notícia favorável de Salomão, tornando-se mais tarde um "amigo particular e favorito" do rei Salomão. O Mestre Delegado refere na abertura dos trabalhos o número 27, número que é também mencionado na cerimónia de encerramento. Alguns autores acreditam que os 27 membros não passam de uma invenção, ou que era um número ob