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Maçonaria Regular e Religião

Nos últimos tempos tem-se falado, muito nos meios de comunicação, das relações entre a Maçonaria e a Religião, particularmente das relações Maçonaria-Igreja Católica. Passado que foi um período de alguma emotividade (e mesmo de alguma agressividade) nessa discussão, cremos que é altura de se fazer ouvir - serenamente - a voz da Maçonaria Regular (que em todo o mundo constitui mais de 90% da Maçonaria Universal e, em Portugal, está vigorosamente a caminho de ultrapassar os 50% de toda a Maçonaria portuguesa), representada oficialmente no nosso país pela Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal (GLLP/GLRP), única Potência maçónica regular portuguesa, internacionalmente reconhecida. Respeitamos todas as posições manifestadas - e não pretendemos entrar na polémica - mas cremos que está na altura de explicitar publicamente a nossa posição, até porque a Maçonaria Regular - aquela que exige que os seus membros sejam crentes num Ser Superior -, estando espalhada por todo o mundo e coexistindo com outras maçonarias sobretudo em países latinos e latinoamericanos, é a única que existe em países tão importantes como a Inglaterra (Loja-mãe da Maçonaria), Escócia, Irlanda, Estados Unidos da América, Canadá, Austrália, Alemanha, Suécia, Noruega, Dinamarca, Áustria, etc., etc. - e estas Maçonarias reconhecem exclusivamente, em Portugal, a GLLP/GLRP. Poder-se-á dizer, de algum modo, que esta polémica se centrou sobretudo, mas não exclusivamente, na inevitável oposição entre alguns anticlericais e alguns clericais - que não confundimos, de modo algum, nem com a maioria da pessoas sem religião, nem com os religiosos, católicos em particular -, oposição em relação à qual a Maçonaria Regular é alheia historicamente e filosoficamente, pois ela não foi, nem é, doutrinariamente, nem "anticlerical" nem "clerical". Além do mais, no final do século XIX e nos princípios do século XX, já a Maçonaria portuguesa tinha enveredado por caminhos que a levaram a deixar de ser reconhecida como regular pela Grande Loja Unida de Inglaterra, o que levou a que vários maçons portugueses, nos anos 80 do século que passou, decidissem promover o ressurgimento da Maçonaria Regular em Portugal, criando a Grande Loja Regular de Portugal de que somos os continuadores e representantes (a Maçonaria Universal legitima esta nossa posição). É um facto que não existe "anticlericalismo" sem "clericalismo" e que um e outro, se alimentam mutuamente, mas se, concretamente no caso português e noutros, houve períodos menos luminosos da história da Igreja (tal como os houve na Maçonaria e na sociedade secular) isso não se deve à religião católica, mas sim a alguns dos homens que foram parte dela. A Igreja Católica, particularmente, teve ao longo da História de Portugal um saldo claramente positivo no que diz respeito à sua actuação em prol do desenvolvimento material, cultural e espiritual do nosso País. Todos somos poucos (crentes, não crentes, católicos ou de outras religiões) para realizar a imensa tarefa que está à nossa frente e que consiste em construir (nacional e internacionalmente) uma sociedade mais justa e mais fraterna, informada por superiores valores espirituais e éticos. Ressuscitar querelas do passado, que só dividem Homens que se pretendem de Boa Vontade, é não só um anacronismo, mas uma tremenda injustiça e um enorme erro histórico (a Igreja já não é a mesma). Mas deixemos a história e as suas polémicas, para nos concentrarmos nos princípios. Se, por um lado, a Maçonaria regular defende o princípio da liberdade religiosa e a sua prática - e portanto defende a liberdade de culto dos clérigos de todas as religiões e dos seus fiéis -, por outro lado, defensores como somos do Estado de Direito democrático e da separação da Igreja e do Estado, queremos a igualdade das religiões perante a Lei - o que não quer dizer a sua igualitarização, já que há razões históricas e culturais que devem ser respeitadas, sem ofender o princípio da igualdade. No entanto, a nossa defesa do Estado laico, não acarreta necessariamente, antes pelo contrário, a laicisação forçada da sociedade que algum laicismo radical quer promover. Recorde-se que uma das raizes dos fundamentalismos religiosos se situa precisamente numa reacção contra essa laicisação extrema da sociedade. Para nós - contrariamente ao que afirmam alguns anticlericais, cujo anticlericalismo é, por vezes, apenas uma capa para uma profunda atitude antireligiosa - uma pessoa religiosa não é necessariamente uma pessoa ignorante e intolerante, pelo menos não o será necessariamente, só por isso, mais do que certos defensores de algumas ideologias laicas. A Maçonaria Regular não considera, muito pelo contrário, que a Humanidade só será feliz quando as religiões terminarem e o laicismo triunfar em toda a Terra. Parece-nos ser esta uma posição de "infantilismo" positivista e racionalista que assolou o fim do século XIX - juntamente com uma noção equívoca de progresso - e que julgávamos já extinta, mas que parece ter querido regressar da maneira mais infeliz e intolerante (juntamente com outras intolerâncias religiosas.) no final do séc. XX (e no dealbar deste novo século). Apesar do progresso técnico-científico e sócio-económico, Deus não "morreu" e as religiões não terminaram, como profetizaram e desejaram alguns, desde há mais de um século. Pelo contrário, o sagrado e o religioso - embora por vezes decompostos e recompostos - regressaram na segunda metade do século XX, com uma força inesperada, quer no quadro das antigas religiões e espiritualidades, quer no quadro de "novos movimentos religiosos" e de "novas espiritualidades", que pretendem responder todos eles (religiões, movimentos e espiritualidades) às inquietações do Homem perante questões últimas da existência humana que não foram resolvidas nem pela Ciência nem pela Sociedade profanas. A Maçonaria regular não sendo uma religião, não é "concorrente" das religiões, pois ela não oferece a salvação, mas apenas uma iniciação. Ela é si uma filosofia sagrada não dogmática que acredita num princípio criador e da qual decorre uma prática espiritual e social de Tolerância e de Liberdade fraternas - que não significam indiferentismo religioso e espiritual. Um maçon regular é, obrigatoriamente, um crente em Deus, num princípio criador supremo que a simbólica maçónica designa por Grande Arquitecto do Universo; isto significa que um ateu não pode ser iniciado como maçon regular. Como tal, um maçon regular, ou segue uma determinada religião (tão bem ou melhor do que os outros praticantes dessa religião) ou, segue a sua via espiritual não especificamente ligada à prática de uma determinada religião. Um maçon religioso tem os seus dogmas (que nós respeitamos) enquanto religioso - não enquanto maçon - e nós pensamos que se enquanto maçon esse homem religioso não é menos bom praticante da sua religião, ele terá de ser forçosamente um religioso ainda mais tolerante e mais fraterno com todos os homens, do que eventualmente seria se não fosse maçon. A Maçonaria Regular respeita fraternalmente todas as religiões (quer as históricas e maioritárias, quer as "novas" e minoritárias) e todas as vias espirituais não especificamente religiosas - com as quais temos muitos valores em comum - e consideramos que elas são, na sua dimensão mais nobre, um factor importante para para o progresso espiritual do Homem e para o estabelecimento da Paz e da Fraternidade entre os Homens. Mas gostaria de dar, para além das questões teóricas, testemunho da minha prática da Maçonaria regular. Ao longo da minha vida maçónica, no quadro da regularidade, tive a oportunidade de participar na iniciação, em Portugal e numa mesma cerimónia, de três praticantes das três religiões do Livro: um cristão, um judeu e um muçulmano; refira-se, neste contexto que Grande Lojas como a de Israel, de Marrocos e da Turquia, são regulares e reconhecem exclusivamente a GLLP/GLRP. Ao longo da minha vida maçónica regular, tive ainda a oportunidade de testemunhar várias magnas reuniões maçónicas que abriram ou encerraram com cerimónias religiosas (muitas delas conduzidas por clérigos maçons), e das quais destaco duas que tiveram eco público nos seus países, razão pela qual as refiro: - um serviço religioso realizado pelo Arcebispo de Estocolmo (luterano), no Verão de 1997, na sede da Grande Loja da Suécia (Palácio maçónico de Estocolmo), na presença do Rei (que, desde o séc. XVIII, é sempre o Grão Mestre ou o alto protector da Maçonaria sueca) e de maçons dos altos graus cristãos de cerca de 20 países; - outro realizado na Catedral de Dunblane (Escócia), no Verão de 2000, conduzida por vários Bispos de confissões religiosas protestantes (presbiterianos, epicospais, etc) numa reunião de altos graus templários (cristãos) que congregou cerca de mil maçons de quatro continentes. Ainda há cerca de dois meses e meio -- neste momento tão difícil para toda a Humanidade -, realizou-se em Washington D.C., na cerimónia de abertura da comemoração dos 200 anos do primeiro Supremo Conselho maçónico do Rito Escocês Antigo e Aceite (Charleston, 1801), um serviço religioso conduzido pelo Capelão do Supremo Conselho americano, um Bispo Metodista. Esse acontecimento, que contou a presença de maçons de 45 países, foi noticiado na Televisão norte-americana - que, diga-se de passagem, entrevistou o responsável máximo do Supremo Conselho para Portugal (regular, único reconhecido e, por isso, o único presente em Washington e, naturalmente, ligado à GLLP/GLRP) . O universo religioso da Maçonaria Regular não se limita, no entanto, às três religiões do Livro, que se referem à Tradição abraâmica. A Grande Loja da Índia, constituida maioritariamente por hindus e parte integrante da Maçonaria Regular, será a organizadora, no final deste ano, em Nova Delhi, da 6ª. Conferência Mundial Maçónica - cuja 2ª. edição a GLRP organizou, em Cascais, em 1996 - que se segue à de Madrid, realizada em Maio último numa organização da Grande Loja de Espanha (refira-se que em Espanha, o Grande Oriente Espanhol dissolveu-se por vontade própria e passou a integrar a G.L.E), a qual reuniu 85 Grandes Lojas (entre as quais as de todos os Estados brasileiros, refira-se) e Grandes Orientes Regulares (por exemplo o do Brasil, o da Itália, o da Holanda) de todos os continentes, e onde a GLRP/GLLP esteve uma vez mais presente - como estará em Nova Dehli -, como única Obediência maçónica portuguesa internacionalmente reconhecida e, portanto, como única representante de Portugal. Quanto ao Catolicismo, e sem pretender entrar em polémica sobre se um maçon regular pode ser ou não católico - parece-me no entanto de destacar que, actualmente (cf. parecer de 1974, do Cardeal Seper, então Prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina e da Fé), a restrição da Igreja só diz respeito "aos católicos que pertençam a organizações que actuem contra a Igreja", o que não é, de modo algum o caso da Maçonaria Regular -, recordo que no século XVIII, até às vésperas da Revolução Francesa, apesar das condenações papais, havia mais de um milhar de padres e monges católicos maçons (inventariados pelo Padre Jesuíta Ferrer Benimelli, Catedrático de História da Universidade de Zaragoça). Exemplos notáveis da dupla condição de maçon e de católico, registaram-se em Portugal, em meados do século XIX, nas pessoas do Cardeal Saraiva, Patriarca de Lisboa, que foi maçon regular (o GOL era ainda regular, na época), assim como o foram, na mesma altura, alguns Arcebispos, entre os quais o de Évora (que foi membro do Supremo Conselho da Maçonaria portuguesa). No século XX, é importante salientar a presença fraterna do Superior dos Jesuitas franceses, Padre Riquet, em algumas reuniões abertas da Grande Loja Nacional Francesa (regular), que integra muitos católicos e, no Portugal de hoje, só posso dar o testemunho de que existem também (mas não exclusivamente) nas fileiras da GLLP/GLRP, muitos (e bons) católicos. Em suma, a Maçonaria Regular considera que é possível - e para tal tem trabalhado empenhadamente em todo o mundo - o entendimento entre os homens religiosos de boa vontade (e, naturalmente, entre estes e os não religiosos e os não crentes). Entende também que as religiões são, em geral, um factor de progresso material e espiritual da Humanidade e que é possível a Paz entre o homens de diversas religiões. A Maçonaria Regular nunca foi nem será uma máquina de guerra antireligiosa, nem "anticlerical", nem atacará nunca qualquer Igreja de qualquer religião, muito em particular a Igreja Católica - até porque, nunca será demais repetir, muitos de nós somos católicos. Todas religiões nos merecem o maior respeito e tolerância fraterna (essa tolerância e esse respeito aprendemos, particularmente, dentro das nossa Lojas, pois somos constituidos por pessoas de todas as religiões) e queremos continuar a contribuir humildemente - pois estamos em muito boa posição para o fazer - para a aproximação e a compreensão entre os diversos credos religiosos, na certeza de que esse é o caminho certo para a Paz e Fraternidade que a Humanidade tanto precisa.

Texto publicado no semanário, O Independente

Lisboa, Dezembro de 2001
José Manuel Anes

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