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Identidade Humana

Encontramo-nos perante uma humanidade em crise. Uma época de transformações globais, dotada de uma extrema e renovada complexidade onde o Homem, na qualidade de representante dessa humanidade, clama uma posição de confronto. Um confronto com a sua própria condição humana.

Qual Hamlet da pós-modernidade, dos tempos que o afrontam com a representação de uma vontade destituída de uma identidade dominante, o Homem observa o mundo e sente a coerência que é ditada pela constante evolução que o cerca. Carpo da sua própria historicidade, fruto das sucessivas revoluções que alteraram o curso da humanidade e moldaram a sua forma multidimensional e ininterrupta, o Homem propugna questões que o remetem a uma esfera de incoerências e incertezas, abalando a sua própria estrutura.

O Homem da pós-modernidade assume-se, enquanto tal, como um sintoma do iluminismo e do racionalismo extremo que alienaram, de uma forma hábil, a condição humana do Homem renascentista. A mentalidade da tekne criou no Homem uma consciência instrumentalista e utilitarista, assim como uma sede de conhecimento insaciável, recalcando a essência da sua identidade e ferindo-lhe uma personalidade que, cada vez mais, o revela como um corpo agrilhoado, onde os valores e os sentimentos mais humanistas fenecem num horizonte asséptico e distante. A Gestell Heideggeriana demonstra, de forma inequívoca, a essência controvertida da nova técnica – o homem ao limitar o mundo que o rodeia, limita-se a ele próprio!?

São poucos os que, constatando, como Husserl o faz, a crise de uma civilização global suportada por um incondicional racionalismo, quer este tenha uma base científica, religiosa ou ideológica, estatuem a imperatividade de uma nova consciência que albergue a condição humana e a eleve ao seu estádio mais solene.

Ao longo da história da Humanidade, diversos factos redigiram e transformaram a ideia que o Homem tinha de si próprio. A teoria heliocêntrica de Copérnico, a teoria da adaptação de Charles Darwin e a teoria Freudiana do Eu inconsciente retiraram ao Homem a posição dominante que possuía no mundo de que era parte integrante e constitutiva. Estas realidades, ao serem assumidas, revelaram-se determinantes na ruptura da identidade do Homem e na evolução das violentas margens da História que o constringem. A ferida narcísica incutida na identidade humana por estas demonstrações condicionaram o pensar humano e deixaram o Homem numa crise existencial que alberga o caos civilizacional que caracteriza a época em que vivemos.

É um facto que vivemos dias vertiginosos, em que se anunciam novos avanços científicos sem que tenhamos tempo para aferir o verdadeiro alcance e benefícios dessas conquistas. Ontem falávamos na sequenciação dos mais de 309 de compostos químicos que compõem o genoma humano e hoje referimo-nos à intervenção no núcleo genético do homem ou à reprodução em série de células germinais como algo comum, sem nos pronunciarmos sobre as consequências que podem daí advir, levando o Homem à beira do que Elio Sgreccia chamou tentação tecnológica.

Eis que perante a humanidade se materializou um estádio que é propenso ao livre arbítrio e à cisão da humanidade. Ecce nuovo homo! O progressivo desenvolvimento das ciências biológicas latu sensu tem inserido o Homem numa época sem precedentes na história universal. A intitulada revolução biológica, que nos submete aos mais profusos sonhos apolíneos, integra-nos num compulsório processo de reeducação que a consciência humana ainda não assumiu inteiramente e que nos transporta para um duelo ético-moral sem precedentes.

Constitui uma certeza incontestável que o desenvolvimento tecnológico erigiu e fundamenta um conceito de biopoder, como Foucault o assumiu, que afronta a mais profunda integridade humana e que nos coloca, a nós humanos, numa posição de servidão egocêntrica. De facto, a consciência humana interiorizou a sua incapacidade de agir sob o desígnio da humanidade. O Homem erigiu um ambiente que lhe é hostil e no qual a necessidade de adaptação constitui uma condição de sobrevivência e não apenas de existência.

A evolução técnica dos últimos séculos permitiu acentuar a diferença entre os mais fortes e os mais fracos, os perfeitos e os imperfeitos, os privilegiados e os destituídos. É esta essência controvertida da técnica que submete a consciência do Homem ao mais profundo desespero e o remete à concepção nietzscheniana do deíficado super-homem.

O património biológico do Homem tornou-se, assim, num campo de actuação científica, política e económica. Um mapa a explorar. Entre mares nunca dantes navegados é anunciado um reino onde as interrogações precipitadas e incoerentes revelam uma adolescência intelectual na forma como se enfrentam e erguem conceitos heterogéneos em relação a um único sujeito: o Homem. Os riscos de o assumir como um mero objecto, ou mesmo como um motivo de uma ambição mecânica, tornam imperativo determinar, com rigor e incontestável firmeza, a dimensão humana e caracterizá-la enquanto manifestação complexa e dinâmica de vida.

Com as constantes interrogações que a evolução tecnológica projecta na consciência humana, a necessidade de delinear e reforçar as fronteiras do que deve ser permitido e do que é absolutamente interdito constitui um passo imperativo na continuidade do Homem enquanto representante da humanidade.

No entanto, é mister construir uma unidade no que atende à definição do que é o Homem. É imperativo esculpir uma identidade sem arestas, perfeitamente definida e cognoscível do Humano, uma vez que a sua identidade é o elemento essencial da sua personalização e constitui o núcleo estrutural da sua qualidade de sujeito activo e passivo do panorama científico e humano.

O presente artigo é gerado no seio desta convulsão humana, procurando a assunção de uma problemática analítica onde o Homem surge como força motriz de uma dimensão dinâmica, humanizante e directiva.

Há uns anos atrás lancei-me num projecto intelectual que pretendeu delinear a identidade humana, aplicando um método rigoroso, mais conexo com as ciências exactas do que com as ciências humanas ou sociais. À luz de Kant, redigi um princípio universal: o humano é uma composição dinâmica, dotada de soma e de uma realidade neurológica bidimensional que interage com o universo numa relação imutável de domínio.

Este princípio universal pressupõe a existência de uma evolução contínua. Desde o Paleolítico superior até ao Neolítico pleno e do Calcolítico até ao Século XXI, o humano foi delineado como uma realidade em constante evolução, adquirindo uma estrutura e uma forma em constante mutação. Parte da sua identidade é o seu desenvolvimento contínuo. Neste momento, não temos dúvidas que, pressupõe, também, a existência de uma evolução constante, de um incansável aperfeiçoamento humano. Construir um templo interior, dotado de Sabedoria, de Força e de Beleza, é uma tarefa que tem o seu início nas primeiras horas de luz e a sua conclusão nas últimas horas da nossa vida.

D.M.

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